quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Natal em Pyongyang


 

Antes de tomar o trem de volta passei algum tempo na praça da estação observando a moça que orientava o trânsito. Ela veste um uniforme azul de aspecto militar e parece muito concentrada em seu trabalho. Aponta a direção com um bastão laranja e faz um uma sequência de gestos curiosos e robóticos, movendo primeiro o corpo e depois rapidamente a cabeça na mesma direção. Num determinado momento, ela me olhou com muita curiosidade, e fiquei imaginando o que se passava em sua cabeça. Pode ser que inveje nossa “liberdade”, nossa banda larga, o carnaval, Jimmy Hendrix e a Biblioteca Nacional da França. Pode ser que passe os dias pensando em fugir dali. Mas não podemos excluir a possibilidade de ela achar que somos uns infelizes, lamentando nossa violência, nossa miséria, nossa futilidade. Pode ser que ache que vivemos numa ditadura do capital, que somos governados por um sistema complexo e perverso de corporações multinacionais aliadas a governos corruptos. Pode ser que ela ache que nossas eleições são uma farsa onde os governantes podem ser trocados caso não atendam os interesses de uma minoria poderosa. Pode ser que ache que somos uns fracos, que aceitamos passivamente a injustiça social. Pode ser que lamente um mundo onde a riqueza material determina as relações humanas, onde precisamos comprar coisas inúteis para afirmar nossa existência e impor respeito aos outros. Pode ser que ache ridícula nossa veneração por cantores pop, atores de novela e líderes religiosos. Pode ser que ache muito triste todo um universo de relações regido pela hipocrisia, sorrisos falsos, imagens manipuladas, publicidade enganosa, cuja verdadeira intenção é apenas obter alguma vantagem sobre o outro. Pode ser que ache intolerável conviver com crianças desamparadas dormindo na rua ao lado de automóveis caríssimos. Pode ser até que prefira viver na mais pobre e brutal ditadura a aceitar o fracasso civilizatório de viver num país rico onde 50 mil pessoas são assassinadas por ano.

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